Dança-educação
De Wikidanca
A dança e a educação são áreas do conhecimento distintas e autônomas. As diferenças se situam no objeto de suas investigações e no modo de operar o pensamento articulado. O termo dança-educação conjuga estas duas áreas num terceiro problema, o ensino da dança para crianças e jovens no contexto escolar. Pode-se afirmar que a crescente importância das reflexões acerca do ensino da dança nas últimas décadas se deve, dentre outros fatores, à inserção da dança nos currículos das escolas através da Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (LDB/96).
Dança-educação, portanto, circunscreve um universo de questões próprias, e não é o único termo a definir as questões vinculadas ao ensino da dança para crianças e jovens. De acordo com Isabel Marques e Márcia Strazzacappa outros termos utilizados para o mesmo propósito são: dança criativa, dança/educação, dança educativa, dança para crianças, dança educacional, e tantos outros termos derivados ou reformulados em neologismos.
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O contexto educacional da dança no Brasil
"Sabemos que o bailarino começa sua formação bem cedo, muito antes da idade de 'prestar vestibular'. Assim ficou registrado no imaginário de muitos que 'quem faz arte não precisa de faculdade', logo, 'quem faz dança não precisa de curso superior." (STRAZZACAPPA, 2006: 12).
Uma questão que esteve em voga desde meados da década de 90 foi a conscientização dos profissionais de dança sobre a importância da formação acadêmica em licenciatura para aqueles que trabalham diretamente com a área pedagógica. Como aponta Strazzacapa, o histórico do ensino da dança no Brasil conta com um extenso número de iniciativas atomizadas de inserção da dança nas escolas como parte extracurricular do ensino. Desta forma, a dança a muito tempo estave presente nas escolas, mas sem contar com profissionais especializados para exercer a função e muitas vezes servindo para atividades lúdicas de comemoração de feriados nacionais ou finalização do ano letivo.
Outro dado importante apontado pela autora é que mesmo inserida no currículo formal, a dança muitas vezes é tratada como um componente da disciplina de educação física, o que direciona seu ensino para o aprofundamento de aspectos fundamentais da saúde e da socialização, e por outro lado, deixa-se de aprofundar as questões especificas da dança, ou seja, o incentivo à criação e o conhecimento artístico através da sensibilização estética.
"Quando se pensa na educação básica, isto é, nas escolas de ensino regular, a dança costuma ser vista como conteúdo da educação física, como claramente indicado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)da área de educação física. Embora as diretrizes situem a dança como uma das linguagens de ensino de arte nas escolas, ela é apresentada ora como complemento das aulas de música - sobretudo quando se estudam as manifestações populares -, ora como conteúdo da educação física, presente nas comemorações cívicas do calendário escolar. Quando a dança finalmente é oferecida no ambiente escolar como uma atividade em si, aparece como disciplina optativa de caráter extracurricular." (STRAZZACAPPA, 2006: 16).
Em 1980 contabilizávamos 4 cursos superiores em dança. Em 2002 era contabilizado um total de 15 de cursos superiores em dança no Brasil, entre bacharelado, licenciatura e teoria da dança. De 2002 até 2011 este número cresceu para 39, além da expansão de cursos de pós-graduação (mestrado, doutorado e especialização. Este fato se deve também à inclusão da dança nas escolas com a LDB/96 e através dos PCNs. A preocupação em relação ao ensino aponta para a importancia crescente das pesquisas em dança-educação no Brasil.
Contudo, ainda hoje permanece o caráter informal dos educadores de dança em muitas realidades de ensino formal e informal. Trata-se de um cenário que apresenta mudanças, mas ainda não é uma prática comum que os professores de dança de projetos sociais e academias de dança tenham a formação acadêmica para a prática pedagógica. Isto se deve a uma série de fatores econômicos e culturais, e a dicotomia entre o saber e o fazer permanece como um fronteira que separa os "verdadeiros" bailarinos daqueles que tiveram que se conformar com um emprego como professor de dança:
A origem do termo
Em meados do século XVIII a Revolução Industrial e as transformações políticas que geraram a Revolução Francesa foram fatores determinantes para a formação do pensamento moderno. Os pensadores iluministas, precursores do estabelecimento do Estado Moderno, defendiam a existência de características inatas de todos os seres humanos. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é um dos principais representantes do iluminismo, o pressuposto de suas teorias é a origem pura dos homens, corrompida no convívio e na formação posterior em sociedade. Portanto, foi somente neste período que a criança se tornou objeto do conhecimento.
Com a virada do século XIX para o século XX, a turbulência das revoluções fomentaram transformações ideológicas e políticas que influenciaram e foram influenciadas por questionamentos centrais no campo das investigações artísticas. Dentre os ideais buscados, a possibilidade insurgente da construção de um novo mundo compõe a essência das criações de importantes pensadores da época. Novos paradigmas em torno das criações em dança surgem, sendo Isadora Duncan (1877-1927) e Vaslav Nijinsky (1890-1950) as duas figuras centrais da dança no ocidente que desencadearam um contínuo processo de rupturas e transformações com o balé clássico1.
Neste contexto, a Dança Moderna surge a partir da negação de uma técnica exterior ao corpo, que enquadra a diversidade dos corpos e dos movimentos num único padrão idealizado, perfeito. Para tanto, os primeiros pensamentos acerca de uma nova técnica de dança priorizavam a expressão autêntica dos indivíduos, de suas sensações e sentimentos. Dentre outras importantes contribuições filosóficas para a concepção dos novos paradigmas da dança, Rudolf Laban (1879-1958), na Inglaterra, e Margaret H'Doubler (1889-1982), nos Estados Unidos, foram os primeiros a pautar também as questões em torno deste par, dança e educação, para o universo infantil.
De acordo com Marques, ambos fundamentaram seus pensamentos em consonância com as aspirações de um novo mundo. Em seus trabalhos é possível localizar um resgate dos pressupostos filosóficos iluministas que pautavam uma natureza humana pura, em que a espontaneidade, a ingenuidade e a liberdade caracterizavam aspectos centrais na formação das crianças para mantê-los próximos da essência humana e, portanto, distantes da corrupção promovida pelo convívio em sociedade:
"Embora não se tenham evidências de que os trabalhos artísticos quer de Laban ou de H'Doubler tenham sido inspirados e/ou baseados na dança da criança, no plano educacional esta conscepção de arte aparece de maneira bem clara à medida que também acreditavam e defendiam a liberdade, a ingenuidade, a espontaneidade e sobretudo a naturalidade a priori contidas nas danças das crianças. Para esses autores, a 'expressão através da atividade corporal espontânea é tão natural na criança quanto respirar' (H'Doubler, 1977: x), ou seja, 'a vontade inata da criança de fazer movimentos do tipo de dança é uma forma inconsciente de extroversão e exercício que a introduz ao mundo da fluência de movimento e fortifica suas faculdades espontâneas de expressão' (Laban, 1985: 12)." (MARQUES, 2010: 145).
1. Estilo de dança que predominava nas produções artísticas de dança desde o renascimento. Legitimada pela corte, o balé clássico exercia um poder hegemônico perante outras modalidades de dança, esta eram consideradas até então como manifestação populares que não adentravam o hall das grandes artes.
Problematizações
O debate em torno do termo remete, de modo geral, a tendência à formalização de um modo específico de ensinar a dança. Ao longo do tempo aquilo que em meados do século XX foi uma iniciativa necessária e transformadora encontrou um lugar de conforto nos dias atuais e define um campo de atuação com pressupostos predeterminados. A questão preemente, então, é como manter em movimento a prática pedagógica da dança.
Segundo Marques, o pressuposto filosófico que estabelece condiçoes universais e inatas a todo o ser humano não condiz com as questões do ensino da dança hoje. Não se trata mais de inverter a lógica do ensino do professor para o aluno, onde este possa exercer suas aptidões de maneira autônoma. Trata-se sim de considerar os diferentes contextos em que cada criança é formada para estabelecer, juntos, uma estratégia de ensino que englobe o auto-conhecimento, o pensamento crítico (amplo, profundo e claro) e a outridade:
"'Outrar-se' é permitir que o outro se coloque dentro de nós, é saber escutar as vozes poéticas e não se sobrepor a elas com argumentações e discussões antes dessas vozes serem ouvidas (Brazil, 2001). [...]Um dos papéis inequívocos da arte na educação do ser humano é propiciar esses momentos de 'outridade', é provocar o espectador a ouvir a voz do trabalho artístico para além de seus aspectos técnicos ou estruturais." (MARQUES, 2009: 33).
Outra questão que deve ser considerada para pensar o elo entre dança e educação se refere às transformação no modo de operar o pensamento em nossa era. Neste contexto em que os saberes são invertidos em informações, o processo de socialização por fragmentos constitui um novo dado da realidade. E um questionamento relevante trazido pela autora acerca do termo dança-educação remete ao anacronismo histórico que o termo situa no dias atuais, em que:
"(...) influenciadas e construtoras das múltiplas realidades por elas vividas, percebidas e imaginadas, as crianças do mundo contemporâneo vivem em teias de relações multifacetadas entre seus corpos, movimentos, danças, família e sociedade poderiam, ao contrário do que sugere a 'dança criativa', ser direta e explicitamente trabalhadas em sala de aula por meio de conteúdos específicos da dança." (MARQUES, 2010: 154).
Com base neste argumento e rumo à um sentido complementar, talvez seja possível planejar uma reestruturação do termo ao invés de sua exclusão ou desvalorização. Mesmo conscientes de que o termo é localizado em um tempo e um espaço definidos, e que, portanto, correspondia a questões datadas, o conceito pauta um questão preemente ainda para os nossos dias, a inversão de uma lógica funcional-estruturalista que privilegia o âmbito do pensamento racional em detrimento da apreensão experiencial, concreta.
É necessário consolidar este novo olhar para a vida em que corpo-mente constituem uma via de mútuas causalidade, e para isso é possível dar vida renovada aos conceitos e tratá-los em seu movimento constante. No mesmo sentido que propõe a autora na passagem acima, uma proposta para esta jornada de reflexões e práticas educacionais na área de dança prescinde a investigação de propostas transdisciplinares, no que concerne ao currículo dentro das escolas, e a contextualização dos sujeitos em suas próprias realidades políticas, sociais e culturais.
Contudo, ao invés de negar, é possível que esta proposta dê ensejo à novos sentidos do termo dança-educação, ou dança criativa, dança educativa e tantos outros sinônimos. Tendo em vista que a prática educacional da dança no Brasil é um tema que deve ser continuamente colocado em questão, não somente no questionamento de seus conteúdos e metodologias, mas principalmente sobre como a especialidade deste conhecimento em arte pode contribuir no desenvolvimento humano das pessoas no contexto em que se inserem, o termo dança-educação pode servir para localizar as investigações contemporâneas daqueles que trabalham diretamente neste campo de confluências.
Referências
MARQUES, Isabel A. Dançando na Escola / Isabel A. Marques. - 5 ed. - São Paulo: Editora Cortez, 2010.
Vários Autores. Algumas perguntas sobre dança e educação / Org. Airton Tomazzoni, Cristiane Wosniak, Nirvana Marinho. - Joinville: Nova Letra, 2010.
Ver também
RENGEL, Lenira. Dicionário Laban / Lenira Rengel. - São Paulo: Annablume, 2003.
Site Faculdade Angel Vianna - V Seminário da FAV
Site Festival de Dança de Joinville - Seminários de Dança