Dança e Semiótica

De Wikidanca

Ir para: navegação, pesquisa

A arte no prisma da percepção – O Enigma de Kaspar Hauser


Ao partir de uma narrativa linear que conta a história de Kaspar Hauser o filme de Werner Herzog - “O Enigma de Kaspar Hauser”1 - trabalha fundamentalmente com elementos essenciais da semiótica, e vai além. O personagem central criado e crescido numa torre, a parte de qualquer rede de convívio social, é retratado num momento posterior, de inserção nesse meio. Esta situação extraordinária possibilita, ao diretor do filme, a exploração da questão essencial do processo de cognição e significação de mundo.


Kaspar Hauser em seu calabouço


Dentre os diversos caminhos possíveis para o desenvolvimento do filme, Werner Herzog opta pela transformação dos paradigmas racionalistas da semiótica clássica. Datado de 1974, o filme se insere num contexto em que a semiótica estacionou seu desenvolvimento na relação entre significante (símbolo) e significado (referência), deixando em aberto a relação anterior entre o significante e o referente.


No filme, o referente de Kaspar Hauser é inexistente ou instintivo, completamente distinto do referente constituído no meio social do século XIX (Século das Luzes), marcado pela revolução burguesa e pelo desenvolvimento do pensamento Iluminista. O contato deste estrangeiro com o meio, deste ser de referentes sociais inexistentes com a codificação presente no convívio daquele vilarejo, produz transformações no seu processo de cognição, além de decorrências diversas de estranhamento e discriminação no campo social2.


O retrato do protagonista se enriquece de momentos de aprendizagem, em que coisas óbvias são apresentadas para espectador como algo construído ao longo da história. Outro dado importante é a apresentação de como Kaspar Hauser reconhece o mundo, suas dúvidas, seu ponto de vista e a forma como contempla fenômenos que cotidianamente nos rodeiam, mas que muito pouco direcionamos a devida atenção. A constituição de uma visão de mundo é desvelada pela percepção ampliada que o protagonista apresenta por não se referenciar estritamente ao modo de conduta codificado e aceito pela sociedade que o rodeia.


Imagem do filme de Werner Herzog - 1974


Ao longo do filme Kaspar Hauser caminha em dois sentidos complementares essenciais para a contestação da ideologia pressuposta em seu meio de convívio. Um é o processo intenso de aprendizagem dos modos e da linguagem para a possibilidade de comunicação, e o outro é o estranhamento constante frente ao conteúdo de sua aprendizagem. Ou seja, a aprendizagem, inverso de passividade, não é despida de uma postura crítica e propositiva, deste modo, após um período de amadurecimento, o personagem apresenta posturas de recusa ou negação (instintiva) de certas situações incompatíveis com o modo como percebe a realidade. Sua contestação não é uma bandeira, mas vivência e atitude.


Neste sentido, a aproximação da postura moral e ética de Kaspar Hauser com o universo artístico fertiliza o campo criativo ao demonstrar que ao retirarmos as obviedades do mundo enxergamos o mundo infinitamente. Tornamos possível conjugar um referente social que não afete a criação de novos referentes, um referente social capaz de conviver sem aniquilar. Portanto, o artista, como artista efetivo, deve ser responsável no sentido de se permitir ampliar o universo significativo para além da representação e da reprodução da ideologia vigente, para que deste modo suas obras sejam, de fato, conspirações para o que de novo há por vir.



1: O título original, “Jeder für sich und Gott gegen alle” ou literalmente Cada um por si e Deus contra todos, contempla o sentido reflexivo do filme que não conta a história de um estranho no meio apenas, mas aprofunda um debate entre paradigmas, em que o racionalismo iluminista é contraposto ao desafio de inserir a regra na exceção. Exceção esta que é potencial de transformação da regra, pois abre um novo caminho para o desenvolvimento do pensar e sentir humano, diferente do racionalismo que coloca à margem os conhecimentos provindos da percepção.


2: Este conflito coloca em cena o debate com a semiótica clássica no sentido de estabelecer o mesmo grau de participação e importância dos três elementos componentes do triângulo de Ogden e Richards no processo de cognição. Por conseguinte, a relação entre significante e significado só têm sentido e existência com o referente. Deste modo, este deixa de ser o campo extralingüístico, assim denominado pela semiótica clássica, para também ser foco de análise e estudo. Neste sentido, a percepção humana passa a compor a via de estabelecimento de realidades, processo anterior à codificação do mundo.


Referências Bibliográficas

BLIKSTEIN. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Cultrix, 2003.


CHAUÍ, M. Convite á filosofia. São Paulo: Ática, 2004.


DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Felix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: 34 letras, 1997.


____. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: 34 letras, 1992.


GIL, José. A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções. Lisboa : Relógio D'Agua , 1996.


____. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D'Água, 1997.


____. Movimento Total. Relógio D'Água,: Lisboa, 2001.


MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.


____. O visível e o invisível. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000.

Ferramentas pessoais
Espaços nominais
Variantes
Ações
Navegação
Ferramentas
Visite-nos
Idana.net - Home