Arte e Política

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No imbricamento entre arte e política, situar a obra de arte e o artista no contexto do século XXI tem como objetivo central e geral problematizar a relação vigente entre a vida e a arte e mais especificamente os imbricamentos entre arte e projetos políticos. Neste sentido, os elementos e estratégias cênicas de cada momento da história do espetáculo levam à questionamentos que perambulavam em torno de uma questão central:


O pressuposto legitimado por uma perspectiva hegemônica de análise da história empreende a arte um lugar de antecipação. Isto dado permite-nos afirmar que a arte se justapõe aos problemas de hoje e suscita provocações sobre o que há por vir. Se este entendimento sobre a arte permanece, é possível afirmar a existência da vanguarda artística na atualidade? E mais especificamente, é possível localizar o ponto de ação das artes de cena neste contexto?

Tabela de conteúdo

Primeiras Aproximações


Quando nos aproximamos de um eixo da história da humanidade que coloca no primeiro plano as investigações da arte em seus contextos sócio-econômicos, nos deparamos com uma série de adaptações, alterações, composições e contraposições dos elementos artísticos no interior e fora de suas modalidades particulares. Este pressuposto de análise somente foi possível a partir da virada do século XX em que a hibridização e a procura por novas formas de linguagem se tornaram fonte e alimento das artes.


O quadro deste período só foi possível, no entanto, devido a um processo histórico desencadeado nos períodos finais da Idade Média, que já apresentava as primeiras explorações no campo das ciências empíricas. Neste percurso, o Renascimento estrutura a primeira proposta de quebra de paradigmas no campo das artes de cena. Isto se deve ao contexto do século XVI em que a Europa passa por sérias crises econômicas que tem suas reverberações no plano político e cultural.


A atmosfera que envolve os momentos de crise e a busca por novos territórios de exploração são os fatores principais que norteiam os sentidos da busca da arte. E pode-se dizer que o contato com novas culturas e a afirmação do território da cultura e do culto fundaram suas primeiras bases no ideal antropocêntrico defendido nas obras de arte deste período.


Neste sentido, o argumento defendido aqui entende as proposições dos dramaturgos desta época, como William Shakespeare, Christopher Marlowe e Ben Jonson, de modo intimamente relacionado à decadência dos reinados como direção política e do crescimento da influência das demais classes sociais – burguesia em ascensão, artesãos e camponeses – sobre os parâmetros medidos na elaboração de novos paradigmas das artes de cena.


Ou seja, nesse momento da história foi o teatro popular que trouxe as inovações de vanguarda das estruturas de espetáculo, e este é um importante elemento para a análise que se segue, pois este parece ser o ponto chave da mudança que nos inspira a refletir sobre a possibilidade de reinventar a vanguarda hoje.


Assim como no Manifesto Comunista de Karl Marx há reflexões sobre a Revolução Francesa como experiência elementar para os percursos da Revolução Proletária, o teatro popular, posteriormente denominado drama moderno, foi a ascendência de uma nova aristocracia burguesa que culminou na democracia representativa organizada por uma burocracia estatal e pelos interesses de mercado.


Claro que no caminho as proposições de Bertold Brecht corroboraram ao longo do século XX, junto das demais manifestações de quebra de paradigmas, com os primeiros passos para a reinvenção da forma das propostas cênicas. Deste modo surgiu o teatro épico que estabelece um diálogo aberto de ruptura com as principais características do drama moderno.


Contudo, será que hoje damos cabo de todas estas propostas revolucionárias, ou será que o poder do sistema capitalista, de abarcar em si e em volta de si, como um organismo viral, toda e qualquer contrapartida é um dado da realidade artística de hoje?

Flutuações


Se as artes do espetáculo são uma fala sobre o mundo, a importância de se questionar se os problemas atuais que infligem a humanidade são abordados pelos artistas de hoje é crescente, tendo em vista, inclusive, que o que há cinco séculos foi revolução, hoje não passa de superficialidade e alienação. Se da abordagem da arte no mundo resultar um tema, qual é ele? E, num outro patamar, se dessa abordagem resultar quebra de paradigmas, qual é ela?


Como foi a subversão dos reinos e de Deus a partir do século XVI, Benjamin em 1929 descreve a textura dos momentos de transformação e reflete sobre as reverberações incitadas pelo movimento surrealista em seu potencial legítimo e legitimador da função que exerce uma vanguarda:


“Há sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original da sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana pelo poder e pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se, enquanto manifestação pública. O surrealismo está atualmente passando por essa transformação. Mas no início, quando irrompeu criadores sob a forma de uma vaga inspiradora de sonhos, ele parecia algo de integral, definitivo, absoluto. Tudo o que tocava se integrava a ele.” (BENJAMIN, 1994: 22).


O surrealismo parece traçar ainda hoje os vestígios de sua trajetória. E neste momento confirmamos sua inexistência presente. Contudo, o aspecto central deste movimento que deve ser reivindicado aos artistas e pelos artistas hoje é a noção fundamental de entrelaçar proposições estéticas com um pensamento-ação no mundo e no ser humano. Este perfil delinearia por si só a investida das artes em um projeto político e em um sentido na vida.


Não se trata apenas de defender uma única leitura, ou uma única perspectiva, mas trata-se sim de perceber o momento de cegueira em que se encontram os atores atomizados da vida cotidiana, que pouco ou nada alcançam numa busca imediata e esvaziada pelo aprimoramento técnico e pelo alcance de formas perfeitas no que há de mais publicitário e vil que esta busca traduz.


Breton, ao tratar a posição política do surrealismo em 1935 já apresenta a aptidão das artes em se aliar aos questionamentos fundamentais da existência. Para isso, ao invés de afirmar um posicionamento definitivo, alerta que:


“Um sistema só permanece vivo enquanto não se apresenta como infalível, como definitivo, mas, pelo contrário, enquanto presta atenção nas coisas mais contraditórias que acontecimentos sucessivos parecem opor-lhe, seja para superar esta contradição, seja para reformular-se e tentar reconstruir-se menos precariamente a partir dela, caso ela se revele insuperável.” (BRETON, 2001: 240).


A proposta que defendia se aliava às primeiras manifestações contrárias à burocratização do Estado soviético por aparelhamento de Stálin. O exílio de Trotsky e seu posterior assassinato levantaram os indícios centrais de desconfiança dos surrealistas. Neste momento de crises internas do Partido Revolucionário e da filiação dos surrealistas ao mesmo, Breton fundamenta a importância essencial do socialismo científico como escola-modelo:


“Como uma escola de penetração sempre mais profunda da necessidade humana que deve tender, em todos os domínios, ao mesmo tempo que na escola mais vasta, a satisfazer-se, mas também como uma escola de independência, onde cada um deve ter a liberdade de em todas as circunstancias exprimir seu modo de pensar, deve ser capaz de incessantemente justificar a não-domesticação de seu espírito.” (BRETON, 2001: 241).


Ao final enfatiza que o elo entre as proposições surrealistas e a luta pela libertação do homem, que se fez na guerra entre dois projetos distintos de sociedade, se concretiza nas ações políticas do grupo revolucionário. O tom que o autor trás para esse alerta se aproxima do tom necessário ao estado quase paralisado que encontramos hoje:


“(...) conciliar o surrealismo como modo de criação de um mito coletivo com o movimento muito mais geral de libertação do homem, que tende, antes de mais nada, à modificação fundamental do modo burguês de propriedade, o problema da ação, da ação a ser imediatamente executada, permanece intacto.” (BRETON, 2001: 243).


Contudo, a grave erro cometido pelos surrealistas é avaliado por Benjamin como um acesso diminuído aos questionamentos oriundos da classe trabalhadora. Isto se deve em parte à desorientações estratégicas, pois, tão importante quanto se contrapor ao pensamento dominante é afirmar um novo posto de reflexão e criação. Para isso era necessário se vincular às massas para continuar compondo seus interesses. O autor descreve o estado da transformação desejado pelos surrealistas da seguinte maneira:


“Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto comunista. No momento os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos, cada minuto.” (BENJAMIN, 1994: 35).


Neste momento vem a tona uma questão contemporânea que permanece a mesma desde o início do século XX, evidenciada pela citação acima. A arte trouxe para camadas cada vez mais próximas do corpo o seu lócus de atuação e a hibridização das artes acontece cada vez mais e mais próximo do estar, do presente, do acontecimento e da matéria (physis).


Lehmann, ao discutir a necessidade de criar uma nova denominação que aglutine as diversas manifestações artísticas de hoje, que diferem predominantemente em termos de forma das criações anteriores, defende o termo pós-dramático por entender que o termo faz a ponte conceitual direta com os rompimentos em relação ao drama moderno. Forma que ainda traduz hoje um pensamento hegemônico e que para ser transformado é lócus de debates por grande número de trabalhos. Na passagem a seguir o autor situa historicamente as influências aqui retratadas:


“Tanto os surrealistas como Artaud e Walter Benjamin ainda acreditavam numa possibilidade de relação direta, revolucionária, dessa prática artística com a realidade.” (LEHMANN, 2010: 242).


O autor continua seu argumento e defende que as transformações sugeridas hoje trazem seu conteúdo político na forma teatral mais que no conteúdo de ideias abordadas. Afirma que este novo modo de tratar as artes de cena traz em si uma proposta revolucionária, pois coloca em pauta o agenciamento das modalidades artísticas com o rompimento de fronteiras e pressupõe um novo modo de gerir a relação entre público e ator. Neste contexto, a transmutação das definições de dramaturgia tem estreita relação com as mudanças dos sentidos das artes de cena, inclusive, da dança.


A questão que persiste é a possibilidade de estruturar uma forma artística que contenha em si uma abordagem política, pois ainda que a revolução do que chamamos teatro pós-dramático, em que as noções de performance se sistematizaram, instaure a necessidade de engajamento dos corpos de performers e público de modo ativo e propositivo, fica ainda um campo a ser descoberto, a saber, a ação no campo estritamente político (institucional).


Quais são as outras formas de ação política que a arte pode impulsionar? É possível afirmar que a ação social e política da arte encontra espaço de comunicação efetivo? É possível afirmar que as últimas transformações das artes de cena em termos de linguagem favorecem uma atuação unida, ativa e eficaz perante o contexto em que se insere? Em outras palavras, é possível articular uma atuação conjunta dos artistas militantes perante os diversos atropelos que os artistas sofrem pelas políticas governamentais exercidas no país?


“Tenho a impressão que para muitos artistas, e intelectuais, a questão central é estar em frente ao perigo. E esse perigo é o perigo de você perder a fala. Não ter a possibilidade de fala, não ter a possibilidade de intervenção ou de ser ouvido numa sociedade como essa. (...) E, por isso, a coisa mais importante no teatro é que você faça uma coisa com o grupo. (...) Nesse sentido, eu percebo que muitos grupos que fazem teatro, não fazem apenas teatro. Eles estão muito mais interessados em criar uma rede, uma espécie de network em que, talvez, em um certo momento eles fizessem um workshop. Em outro momento eles fariam um seminário, e conseguiriam juntar o dinheiro para montar uma peça, em um grande teatro por algum tempo. Então eles fariam um novo experimento com uma nova coreografia,ou seja, é uma prática muito heterogênea. E nisso, o que eu acho interessante é que a prática artística, a arte, ou a estética, continuam sendo questões importantes, mas não mais o centro.” (LEHMANN: 2010: 243).


(In)Conclusões


Uma analogia que gostaria de deixar aqui registrada surgiu das recentes experiências com a mobilização dos servidores estaduais por melhores condições de trabalho. As grandes passeatas de mobilização da população organizada em grandes assembléias representativas são por vezes desgastantes, pois a codificação da linguagem nesse campo esteriliza a atuação política. Trata-se de um modo de gerir o movimento por vezes desgastado e enfadonho, mas que se deve à eficácia do modo que não foi superado por outras tentativas.


Por outro lado, ao observar a maneira como a figura pública de um partido de massas atua, percebe-se a articulação do corpo integral com a necessidade de estar presente com as demandas oriundas da população. Neste sentido, refletir sobre a arte em seu contexto social nos leva a pensar o performer, esta figura central do pós-dramático, como um comunicador em primeira instância: qual o empenho e o desempenho dos artistas na busca por uma comunicação efetiva e por uma ação política perante as questões sociais prementes? Será ainda necessário manter em instâncias separadas esta ação política e a ação estética? Manteremos-nos em guetos artísticos sem nos envolver com as demandas mais gerais de outros setores da sociedade? Quando e para onde daremos o próximo passo?

Bibliografia


BRETON, André. “Posição Política do Surrealismo”. IN: Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau editora, 2001.


BENJAMIN, Walter. “O Surrealismo. O Último instantâneo da inteligência européia”. IN: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.


LEHMANN, Hans-Thies. “Teatro Pós-Dramático e Teatro Político”. IN: O Pós-Dramático: Um conceito operativo?. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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